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O luthier, suas ferramentas e suas criações, as violas (Foto: Ricardo Moura) |
Por Julya Vasconcelos
Há algo de místico na arte de se construir um instrumento. Porque não é apenas a transformação física da madeira, do metal ou do couro, que são contorcidos, cortados, fendidos, costurados. É colocar dentro dessa metamorfose, que exige a mão sábia de um artesão, uma espécie de alma. Ou feitiço. E essa alma, feitiço ou coisa que o valha (tão difícil definir mistério) está no detalhe, na distância entre as divisões que compõem o braço de uma viola. No tamanho da abertura que se faz no seu corpo, na densidade da madeira que se usa nas suas laterais. E por fim, com tudo já pronto e com as cordas estendidas sobre o corpo de uma viola dinâmica, no seu ateliê na Cohab II, em Gravatá, Nezinho traz o objeto encantado para si e vai achando as notas perfeitas.
“Sabe que nota é essa? É um ré maior. Agora ré menor. Lá maior. Agora dó maior”, vai demonstrando uma a uma. “Agora a nota musical que eu sou apaixonado por ela chama-se essa aqui”, e toca, concentrado, um demorado lá menor. “Eu gosto dessa demais, olha que coisa bonita!”, diz o famoso luthier de Gravatá por detrás dos seus óculos de grau. Um pouco antes, Nezinho havia dito que não sabia tocar: “Não, não, não. Eu sou ruim que só a peste pra tocar. Eu só faço a viola pra quem canta”. Mas ao empunhar o violão, dizendo que vai fazer só um “arranjozinho de nada”, o cantador pede licença ao luthier e revela a paixão daquele homem para além do objeto. A paixão pela tal da alma que sai de dentro dele.
Ao longo da conversa, responde várias vezes às perguntas em versos, de improviso. O ateliê de Nezinho é feito de poesia, som e um cheiro forte de madeira e verniz. Até o final da longa prosa, Nezinho não para de dedilhar a viola. Agora temos trilha sonora e a sensação de que deve mesmo haver um segredo para que a junção de todas aquelas peças coladas, envernizadas e arrematadas com cordas tensas tenha um som tão bonito.
Na Itália, Antonio Stradivari, luthier dos famosos violinos Stradivarius, foi alvo de diversas teorias. Diziam que ele utilizava verniz com cinzas vulcânicas, ou madeiras de navios naufragados e curados na água salgada do mar, para fazer com que seus violinos tivessem um som tão incrível. O fato é que seus instrumentos até hoje são objetos de desejo de músicos do mundo inteiro, e seu som, magicamente, não se assemelha ao de qualquer outro violino fabricado pelas mãos que não sejam as dele. Nezinho fala que não tem desses segredos. Revela a sua ciência: diz utilizar quatro tipos diferentes de madeira em um mesmo violão: cedro e pinho; maçaranduba no corpo; e, nas laterais e no encosto, imbuia ou jacarandá. “Para ser um bom luthier é preciso muita paciência e muito cuidado, porque se você errar um milímetro, já errou muita coisa”, revela. “Até aqui, modéstia à parte, eu nunca fiz uma viola pra alguém botar defeito”.
Mestre Nezinho é conhecido especialmente pelas suas violas dinâmicas, muito apreciadas pelos cantadores. Severino Soares, Sebastião Barreto, Hipólito Moura, Luciano Leonel, Josenildo França e diversos outros violeiros da região encomendam ou concertam instrumentos com Seu Nezinho. O artesão ensina que a viola dinâmica tem uma peça central que se chama diafragma, por sobre a qual passam as cordas e então o som é amplificado de um jeito diferente da viola tradicional. “Aí o som é outro som, bonito, mais amplificado. Mas é um som mais estridente, mais fino. Os cantadores gostam”, explica o luthier.
Nascido Manoel Fernandes da Silva Filho, em 18 de maio de 1951, Nezinho foi agricultor como o pai, e depois serralheiro, pedreiro e marceneiro. Já foi até camelô na Praça do Derby e consertou bicicletas naquele mesmo ateliê. Conta que sempre trabalhou com as mãos, que sempre foi um observador. Começou no ofício de luthier quando já tinha pra mais de 40 anos, observando um outro artesão, que não quis lhe ensinar nada, mas se deixou observar. “Ele não me dizia nem onde comprar as madeiras, mas como quem tem boca vai à Roma, né?”. De tanto olhar, Nezinho sentiu que podia fazer igual. Primeiro lixou uma viola inteira, gostou do resultado. “Depois eu pensei: vou fazer uma viola pra mim mesmo, porque se eu errar é problema meu, eu quebro e faço outra”, conta o artesão. E aconteceu. A viola ficou boa de som, mas ruim de regra.
Mas o tempo foi correndo ligeiro e Nezinho aprimorou a técnica que, junto ao talento e ao prazer que o envolvem na sua atividade, deu origem a um dos melhores luthiers de Pernambuco. Hoje em dia, conta que deve ter fabricado cerca de 30 violas e consertado um número incontável de outras. Tem dois filhos, mas nenhum deles seguiu seu ofício. Sentado na bancada da sua oficina, que funciona na casa que habita sozinho no subúrbio de Gravatá, Nezinho lamenta a diabetes e a falta de uma companheira. Mesmo assim, vibra ao falar da sua profissão. Quando pergunto o que sente ao ver um instrumento seu sendo tocado por alguém, é categórico na resposta: “Me sinto feliz”, responde sem titubear. “Um cabra que sabe tocar pega uma viola dessa que eu fiz e faz dela outro instrumento, outra coisa. É bonito de ver”, diz sobre os seus clientes e as notas perfeitas que oferece, generosamente, de matéria-prima para as músicas dos outros.
O ateliê do Mestre Nezinho de Gravatá fica na Rua Padre Augusto Soares, 279 – Cohab II, Gravatá/PE.
*Narrativa realizada na ocasião do Festival Pernambuco Nação Cultural do Agreste Central, edição de Gravatá, realizada de 11 a 16 de setembro de 2012, durante a Festa da Estação.
http://fpnc.org/
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