Praticado como é em todo mundo, o teatro de bonecos assumiu
fisionomias e espírito dramático diferenciados, dependendo da
localização geográfica de cada uma de suas manifestações. Isso devido,
obviamente, às próprias injunções de tradição cultural, costumes,
formação social, econômica e política.
Existe em alguns estados do Nordeste do Brasil uma forma de teatro de
bonecos praticada por artistas do povo, que se denomina Mamulengo. É o
Mamulengo um teatro de características inteiramente populares, onde os
atores são bonecos que falam, dançam, brigam e quase sempre, morrem.
Como em tantas outras manifestações artísticas da cultura popular
nordestina, o Mamulengo revela de modo singular a rica expressividade do
dia-a-dia do povo da região. Através dos bonecos, o povo se identifica
com suas alegrias e suas tristezas, com seus temores e sua capacidade de
fé, com seus tipos matreiros e seus elementos repressores, com o
esmagamento de seus direitos e sua ânsia de liberdade.
O Mamulengo tem, realmente, um extraordinário poder de sintetização e
revelação estética dos anseios mais ardentes do povo nordestino, não
obstante a precariedade de seus recursos disponíveis, quer técnicos,
quer mesmo estéticos ou de escolaridade. Guardando elementos vinculados à
tradição dos folguedos ibéricos e sendo remanescentes dos espetáculos
da Commedia dell´Arte, o Mamulengo baseia-se na improvisação livre do
ator (mamulengueiro).
Conquanto tenha um roteiro básico para a história, que não é escrita,
os diálogos são criados no momento mesmo do espetáculo, de acordo com
as circunstâncias e com a forma de reação do público. Não podendo
existir sem a música e sem a dança, o Mamulengo exige do público uma
participação constante e ativa, que permita completar, o que os bonecos
muitas vezes irão apenas sugerir. Requer-se, portanto, uma imensa
interação boneco/plateia, que não se torna difícil por conta do incrível
poder de improvisação e capacidade imaginativa que tipifica os
mamulengueiros. Por isso, sendo um teatro do improviso, do repente,
depende visceralmente do público assistente que alimenta, ignora ou
castra a vertente de criação que sai do mestre, passa para o boneco e
atinge o público. Ao reagir, a assistência oferece a inspiração
necessária ao processo de criação improvisada, de que se constitui o
espetáculo, formando um ciclo contínuo que envolve a todos, titireteiro,
títeres e público.
O espetáculo do Mamulengo, que seja urbano ou rural, é destinado a um
público específico. O Mamulengo não satisfaz as necessidades teatrais
ou mesmo emocionais do público intelectual e burguês que habitualmente
freqüenta nossos teatros. Quando muito, esse público assiste a uma
função por curiosidade, por atitude exótica ou por seu aspecto
folclórico. Fica bastante claro que seu público é o povo, as camadas
mais inferiores da sociedade, a gentalha, a rafaméia, o Zé-povinho. A
esse povo o mamulengueiro sabe falar, dizendo dos mais diferentes
aspectos de suas vidas, transfigurando suas alegrias e dores.
Freqüentemente, o Mamulengo é de uma contundência admirável, motivado
por uma inspiração fascinante que lhe permite alterar o equilíbrio do
mundo, as relações de poder, insurgindo-se contra o maniqueísmo da vida,
criando um outro mundo que ele próprio governa, uma situação
poético-dramática que incorpora o público. Arranca personagens e temas
de um mundo ao qual é sujeito, submisso e pelo qual é explorado,
transpondo-os, em transfiguração muito própria, para um mundo onde sua
voz, anseios e vontades são ouvidos. Isso tudo na intenção maior de
provocar o riso, que gerando a folgança, o alívio, o divertimento, atua
como elemento catártico e de grande comunicabilidade.
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