Onde a coruja dorme, documentário sobre o pernambucano Bezerra
da Silva (1927-2005), será lançado nesta sexta-feira, no Cine Cento e
Quatro, em Belo Horizonte. Não se trata de cinebiografia, mas de uma
espécie de retrato artístico pintado coletivamente pelo próprio Bezerra e
por criadores dos sambas que ele gravou. Gente como Tião Miranda, que
trabalha com refrigeração; o bombeiro Pedro Botina, que ganha a vida
removendo cadáveres; o carteiro Claudinho Inspiração; o camelô Popular
P; 1.000tinho (sic); Walmir da Purificação; Roxinho; Adelzonilton e Nilo
Dias. Essa turma compôs sucessos como Malandragem dá um tempo (“vou apertar/ mas não vou acender agora”), Candidato caô caô e Minha sogra parece sapatão.
“As
pessoas vão conhecer os compositores que fazem a glória da música de
Bezerra da Silva”, afirma Simplício Neto, que dirigiu o filme em
parceria com Márcia Derraik. O repertório genial veio de artistas
anônimos – alguns nem são músicos profissionais. Muitas pérolas nasceram
do batuque em caixa de fósforos ou em balcões de bar. “São visões da
vida do brasileiro com a linguagem do samba, do humor e do protesto.
Trazem o olhar das classes populares, da Baixada Fluminense e da
periferia sobre temas muito atuais, como corrupção política, liberação
das drogas e arrecadação de direitos autorais”, explica o diretor.
Bezerra
da Silva teve o papel fundamental de trazer à luz essa produção. Até
então, ressalta Simplício Neto, as comunidades não eram ouvidas sobre
esses temas. A opção de filmar um “retrato coletivo” veio da constatação
de que se ignorava quem, realmente, fez a cabeça de Bezerra da Silva.
Bezerra
atuou quase como etnólogo e antropólogo: recolheu as canções de seus
amigos, transcreveu-as e identificou seus autores. “Ele é um pouco
curador”, resume Simplício. “Com gravador debaixo do braço, ele andou
pelas comunidades, foi a lugares onde a coruja dorme, como dizem os
músicos, procurando canções e autores. Esse material poderia ficar
anônimo para sempre, virar folclore”, observa. O cineasta lembra que o
pernambucano deixou obra inteligente, feita com talento, perspicácia e
sensibilidade. “Ele era muito honesto. Inclusive, cuidou dos direitos
autorais dos compositores”, elogia. O cineasta compara a ação de Bezerra
da Silva à de Mário de Andrade como pesquisador e divulgador da cultura
brasileira.
Onde a coruja dorme teve como ponto de
partida o curta homônimo, lançado em 2001 e assinado pelos mesmos
diretores, recém-formados em cinema. Quando apresentaram a ideia a
Bezerra, ele reagiu rispidamente: “Elogio não enche barriga, é preciso
dinheiro para filmar”. Mas apoiou o projeto quando soube que o
documentário traria os compositores que ele gravou. Prêmios em editais
de estímulo ao cinema permitiram a finalização e a distribuição do
longa.
“Bezerra da Silva é respeitado pelo pessoal do rock e do
hip-hop, que vê nele o samba contemporâneo, mas suas músicas ainda são
raras nas rodas de samba. É preciso reconhecer o papel importante dele.
Bezerra fez o partido-alto da Baixada”, defende Simplício Neto. “Falta a
intelectualidade e a academia abrirem os olhos para essa arte. Os
sambas de Bezerra devem voltar ao povo, de onde eles vieram”, completa.
Em 1990, Bezerra da Silva lançou o disco Eu não sou santo. Em entrevista ao Estado de Minas,
explicou que suas canções eram retratos do cotidiano da favela. O
cantor negou ser o inventor do estilo, recusou o rótulo de “sambandido” e
criticou o pagode: “Isso não é gênero de música. Pagode é templo de
povo asiático. E coisa de quem quer desmoralizar a profissão dos
outros”.
Ele é o cara
Bezerra da Silva
vendeu milhares de discos. Fez sucesso, mas não tocava no rádio.
Tornou-se conhecido da classe média por meio de bandas como Barão
Vermelho. O rapper Marcelo D2 gravou um disco homenageando sua obra. Com
a caricatura do cantor que ilustra esta página, o cartunista Quinho, do
Estado de Minas, venceu prestigiado salão de humor carioca.
“Ninguém
queria as minhas músicas, pois eram consideradas música de vagabundo.
Os compositores são pedreiros, bicheiros, camelôs, desempregados e
favelados. A maioria mora na Baixada Fluminense. São pobres, mas têm o
dom da inspiração.”
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